segunda-feira, março 19, 2012

Com Amor e Sangue

A música ainda não se fazia ouvir, mas o desfile dos pares em roda anunciava-se no terreiro, ao lado da capela.
A tarde ia ser de marchas; e o pai, com o seu par, encabeçava o desfile. Bem trajado, como sempre o fizera enquanto a vida lho permitira. Olhei-o, tranquila: ele parecia bem.
Mas a minha música era outra; e segui o meu caminho, estrada acima, pela berma de pedras soltas, rumo a casa. Caí. Os joelhos cravejaram-se de pedrinhas e o sangue jorrou em grossas gotas. Lavei-as com vinagre, de passagem pela casa de uma amiga, entrando por uma porta e saindo por outra, sem me deter. Deixei que por lá escorresse um rasto ácido e ensanguentado, marca de um trilho, talvez pedido de socorro, talvez semente; ou um brilho de estrela cadente, num registo fugido, demente.
Arrependi-me e voltei para me desculpar e limpar o chão que se empastava, ressequia; enquanto o pai chegava a casa, depois da dança, e dizia:
- Estou muito cansado, vou dormir.
Ainda pensei em oferecer-lhe de jantar, mas não valia a pena, ele não comia. E eu só podia responder-lhe: “Descansa em paz, meu pai!”
Mas respondi:
- Dorme bem, pai.
Porque a eternidade é um sonho sossegado para quem consegue dançar a vida com ritmo e equilíbrio. Com amor.

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