quinta-feira, dezembro 27, 2018

O Amor, esse bicho papão


«O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato. O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço. O amor comeu meus cartões de visita. O amor veio e comeu todos os papéis onde eu escrevera meu nome.

O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas. O amor comeu metros e metros de gravatas. O amor comeu a medida de meus ternos, o número de meus sapatos, o tamanho de meus chapéus. O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.

O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas. Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas, meus raios-X. Comeu meus testes mentais, meus exames de urina.

O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia. Comeu em meus livros de prosa as citações em verso. Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos.

Faminto, o amor devorou os utensílios de meu uso: pente, navalha, escovas, tesouras de unhas, canivete. Faminto ainda, o amor devorou o uso de meus utensílios: meus banhos frios, a ópera cantada no banheiro, o aquecedor de água de fogo morto mas que parecia uma usina.

O amor comeu as frutas postas sobre a mesa. Bebeu a água dos copos e das quartinhas. Comeu o pão de propósito escondido. Bebeu as lágrimas dos olhos que, ninguém o sabia, estavam cheios de água.

O amor voltou para comer os papéis onde irrefletidamente eu tornara a escrever meu nome.

O amor roeu minha infância, de dedos sujos de tinta, cabelo caindo nos olhos, botinas nunca engraxadas. O amor roeu o menino esquivo, sempre nos cantos, e que riscava os livros, mordia o lápis, andava na rua chutando pedras. Roeu as conversas, junto à bomba de gasolina do largo, com os primos que tudo sabiam sobre passarinhos, sobre uma mulher, sobre marcas de automóvel.

O amor comeu meu Estado e minha cidade. Drenou a água morta dos mangues, aboliu a maré. Comeu os mangues crespos e de folhas duras, comeu o verde ácido das plantas de cana cobrindo os morros regulares, cortados pelas barreiras vermelhas, pelo trenzinho preto, pelas chaminés. Comeu o cheiro de cana cortada e o cheiro de maresia. Comeu até essas coisas de que eu desesperava por não saber falar delas em verso.

O amor comeu até os dias ainda não anunciados nas folhinhas. Comeu os minutos de adiantamento de meu relógio, os anos que as linhas de minha mão asseguravam. Comeu o futuro grande atleta, o futuro grande poeta. Comeu as futuras viagens em volta da terra, as futuras estantes em volta da sala.

O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite. Meu inverno e meu verão. Comeu meu silêncio, minha dor de cabeça, meu medo da morte.»

  (João Cabral de Melo Neto (09.01.1920 / 09.10.1999), Os Três Mal-Amados, falas da personagem Joaquim)


  A minha leitura:
 O texto é formado por imagens poéticas que revelam um apego aos seus bens – materiais, certezas, memórias, preocupações... –, que passou a desapego a partir do momento em que o amor entrou em cena; aí deixou de haver apego a tudo isso para só o amor fazer sentido. O amor vem perturbar toda a vida de quem ama.

 O amor comeu tudo aquilo a que eu chamava meu. Porque isso não era amor, mas egoísmo. Quem ama deixa de chamar seu ao que é seu, para dividir com os outros. Só assim se ama, deixando que o amor tome o que é meu para repartir com os demais. Só assim o amor se multiplica, se soma, se dá e se tem.  

  Se amo deixo de ser eu para ser tu, para ser nós.
 Se amo, aquilo que para mim é um bem fica para segundo plano, já não me apego a isso; mas também as minhas dores ficam suavizadas porque não ponho aí o meu foco, e, porventura, porque também recebo amor. O meu foco, ou objecto do meu amor, deixa de ser eu próprio para ser o outro a quem me dedico.

Já entre as primeiras comunidades cristãs ninguém chamava seu ao que lhe pertencia, mas tudo entre eles era comum. Havia "um só coração e uma só alma” (Act 4, 32). Era o Amor que reinava, que os unia, de modo que não havia necessitados entre eles, porque tudo o que tinham o punham em comum.

Parece tão simples!
Então porque há tanto desamor no mundo?
E porque há tanta gente que não ama... e gente que não (se) deixa amar?

8 comentários:

Ailime disse...

Boa tarde Fá,
Um texto magnífico com que nos presenteia neste final de Ano!
Que em 2019 saibamos viver o verdadeiro Amor com desapego e sabedoria como tão bem escreve o autor.
Desejo-lhe um próspero Ano Novo repleto de amor.
Beijinhos,
Ailime

CÉU disse...

Boa pergunta!
Votos de um magnífico ano de 2019, com amor!
Beijos.

edna figueiredo disse...

Que texto lindo!
Nunca tinha lido!

Fá querida,
que o novo ano seja cheio de paz, saúde e alegria.
Que ele venha generoso e carregado de bênção!
Que Deus guie seus passos e ilumine seus caminhos.
Beijos.

Ulisses de Carvalho disse...

É um amor muito guloso! A ideia é bem interessante. Bom 2019 para ti também, abraços!

Franziska disse...

Me han gustado tanto el texto propuesto como tu interpretación y lo único que siento es que mis conocimientos de la lengua portuguesa sean tan pobres y yo no consiga disfrutar completamente de todo el sentido que los dos textos tienen.

Del amor se han dicho y se dirán millones de aspectos diferentes y es que, en mi opinión, el amor es como las personas todas nos parecemos pero ninguna somos igual a otra. El amor también pasa por el tamiz de lo que somos.

Me ha encantado. Un abrazo.

Roselia Bezerra disse...

Boa noite de alegria de novo ano, querida amiga!
O Amor é um devorador de 💙💙... entretanto é o único que restitui a vida plena... é incrível!
Seja muito feliz e abençoada junto aos seus amados!
Bjm fraterno e carinhoso de paz e bem
⚘🌷🌺

SOL da Esteva disse...

Um belo presente. Magnífico texto. Votos recebidos e retribuição com desejos de um excelente ANO TODO.


Beijo
SOL

alfacinha disse...

Um amor guloso , o texto é um prazer para ler.
Um feliz ano novo

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